Sexta-feira, às vésperas do fim de semana e as baiteras, pequenas canoas feitas de madeira, antes ancoradas com cordas na beira da maré, são lançadas no Canal de Santa Cruz, em Itapissuma, Litoral Norte de Pernambuco. Com a proximidade do sábado e domingo, dias em que a venda de ostras aumenta consideravelmente nas praias pernambucanas, os ostreiros adentram na maré baixa ainda de madrugada.
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Pergunto aos pescadores como eles sabem se o canal vai estar cheio ou vazando para programarem os horários do dia de trabalho. As respostas divergem e nenhum deles diz utilizar artifícios tecnológicos ou sabedorias milenares para descobrir a hora de pico. São olhos acostumados, desde a infância, com o balanço da maré, de onde retiram o sustento familiar. Eles simplesmente sabem.
A bordo da canoa ‘Lisca’, alugada pelos ostreiros juntamente com um motor de bote, a reportagem do LeiaJa.com segue de carona maré adentro para descobrir como é feito o processo de retirada das ostras. A atividade exige uma atenção especial e redobrada; por serem trabalhadores autônomos, não podem se machucar ou se afastar do trabalho, caso se acidentem durante a primeira parte do trabalho.
Não há mapas virtuais ou físicos dos rios. Todo conhecimento sobre os caminhos da maré são passados de uma família para outra. Nas camboas, canais naturais no manguezal com dimensões que permitem a navegação de menores embarcações, os ostreiros parecem se sentir à vontade. O percurso do Canal de Santa Cruz até uma pequena região de mangues do Rio Igarassu leva cerca de uma hora. Eles dizem que para retirar a iguaria tem que se afastar muito do pier de Itapissuma, porque a disputa é grande e as ostras estão se acabando.
“O mangue começa a ficar escasso porque a gente vive disso aqui. A crise deixou todo mundo sem emprego e a natureza oferece o pescado que é de graça, mas o esforço físico é muito e só faço porque não tenho outra opção. É degradante demais”, conta Josemir Nascimento, 31, conhecido entre os ostreiros como Careca. Ele herdou do pai a técnica de retirar ostras do mangue e há 15 anos trabalha na área para sobreviver.
Terra das ostras
Itapissuma é considerado o maior produtor de pescado de Pernambuco e uma estimativa da Agência Estadual de Meio Ambiente de Pernambuco (CPRH) aponta que 70% da população depende direta ou indiretamente da atividade pesqueira. O complexo estuarino do Canal de Santa Cruz recebe a descarga dos estuários dos Rios Igarassu, Botafogo, Arataca, Carrapicho e Catuama. Nos braços costeiros do canal estão os manguezais, ecossistemas de transição entre a terra e o mar, sujeito ao regime das marés.
Nas águas do Canal de Santa Cruz, as ostras são retiradas das raízes aéreas do próprio mangue e o objetivo dos ostreiros é retirar a maior quantidade dos moluscos para encher os baldes e garantir o sustento familiar com a comercialização do produto. A iguaria é utilizada há séculos como alimento e apreciado pelos mais refinados paladares em restaurantes frequentados no mundo inteiro.
Em Itapissuma, os ostreiros realizam todo o processo produtivo, desde a extração, o cozimento ou a conserva ‘in natura’, até as venda nas praias de Pernambuco, Paraíba e Alagoas. Nas proximidades das margens do estuário do Canal de Santa Cruz, uma série de casinhas feitas de tábua serve de depósito para os profissionais deixarem o material de trabalho, como o balde, os equipamentos e as roupas de ir ao mangue.
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Apesar de visivelmente serem presentes no município, pouco se sabe quem são e de que forma trabalham os ostreiros. A Prefeitura de Itapissuma informou que não há uma contabilidade exata de quantos profissionais atuam no ramo, porque eles são ‘desorganizados’ e trabalham por temporada. A gestão estimou em 800, o número de ostreiros. Não existem associações ou cooperativas e garantia de direitos ou políticas públicas não fazem parte da realidade prática de quem retira ostras todos os dias.
De acordo com um Diagnóstico Socioeconômico da Pesca Artesanal do Litoral Norte, realizado pela Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), do ano de 2008, uma necessidade urgente nas comunidades do município é o ordenamento da coleta de ostra. “Esforços no sentido de desenvolver o cultivo comunitário de ostras merecem um destaque nessas comunidades. No caso dos ostreiros da região do Canal de Santa Cruz para implantação deste empreendimento, requer capacitação, consultoria, informações sobre tecnologia, meio ambiente, associativismo e comercialização. Estudos sobre as ostras e o meio ambiente local, são muito importantes, visto a necessidade de se acompanhar os estoques nativos e possíveis cultivos que venham a surgir”, diz o documento.
Ronaldo Roberto dos Santos, 28, natural de Itapissuma, nasceu e se criou na maré. De segunda-feira a quinta-feira entra no mangue para coletar ostras. No fim de semana, ele vende o produto na Praia de Boa Viagem. Ele precisa alugar a canoa e o motor para não ter que remar por horas até os manguezais do Rio Igarassu. Com um balde cheio, que leva cerca de três horas para enchê-lo, ele lucra R$ 200, se o dia for bom nas vendas. É ostreiro e pescador desde a adolescência e conta que já chegou a chorar por causa dos mosquitos e bichos que vivem no mangue.
“Não é uma tarefa fácil. Tenho esposa e filhos e se eu pudesse estaria em outro emprego. Eu gosto de saber da maré, mas quero um futuro melhor para os meus filhos, ainda mais com o canal ficando escasso e as ostras e o pescado se acabando”, diz Ronaldo.
O Canal de Santa Cruz sofre um forte impacto ambiental que afeta diretamente a fauna e flora marinha, diminuindo os recursos pesqueiros e em conseqüência afetando toda população local. Com pouca fiscalização, atividades como a carcinicultura, pesca predatória e a falta de saneamento básico, que despeja todo o dejeto diretamente no canal, prejudicam cada vez mais a vida de quem vive da maré.
“Muitas pessoas em Itapissuma dependem da ostra para sua sobrevivência e medidas urgentes precisam ser tomadas, onde o principal problema a ser solucionado é a necessidade de diminuir o esforço de pesca sobre o estoque de ostras. Alternativas de renda precisam surgir para que esta população tenha uma melhora na sua qualidade de vida, além de soluções de médio e longo prazo que recuperem o estoque, diminuam a poluição e proporcionem um ambiente sadio para que o Canal de Santa Cruz recupere seu tamanho de comercialização”, diz outro trecho do documento da UFRPE.
Confira o documentário produzido pelo LeiaJá.com sobre os caminhos dos ostreiros:
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Nas praias de Pernambuco, os ostreiros de Itapissuma disputam espaço para vender o produto
Quem frequenta o litoral pernambucano conhece bem a iguaria. “Olha a ostra”, eles dizem. Com água na boca, o cliente gosta de saboreá-las com pimenta, sal, cominho e azeite. Uns ou outros sempre tentam diminuir o valor cobrado pelo vendedores, em média dez ostras por R$ 12. Pedem para colocar quinze e procurar pelas maiores. Poucos sabem, na verdade, o caminho da iguaria até chegar nos paladares.
Severino Faustino é ostreiro há 28 anos e diz que enfrenta a pior fase, tanto em vendas, como na retirada do produto por causa da escassez do mangue. “É um trabalho desumano. A gente não tem proteção nenhuma, não pode se aposentar nem tão cedo porque é um trabalho informal. A disputa é muito grande porque todo mundo quer vender. Quem não consegue entrar no mangue, paga pelo balde em Itapissuma. Custa R$ 40”, conta o vendedor.
Severino gostaria de uma condução ou um transporte para aliviar na rotina de trabalho. São três ônibus para ir e três para voltar, várias integrações. Muitas vezes vai em pé nos coletivos com um balde que pesa em média 20 kg. “Já prometeram um ônibus pra gente, mas até agora só ficou na conversa”, pontua.
A Secretária de Meio Ambiente, Indústria e Comércio de Itapissuma, Luciana Bernardo, informou que uma série de políticas públicas ainda não foram instituídas porque há uma dificuldade em saber quem é o real ‘ostreiro’. “É algo muito rotativo. Eles arrumam um emprego fixo e saem do ramo. Essa rotatividade dificulta a articulação de uma associação ou organização que contemple todos as demandas”, explica.
A gestora ressaltou que a Prefeitura distribuiu ‘kits ostreiros’, em setembro deste ano, com blusas, bonés e caixas térmicas, além de realizar uma série de palestras e atividades para incentivá-los a tornar o negócio mais organizado. No banco de dados da gestão municipal só constam 400 ostreiros cadastrados. Sobre o transporte até Boa Viagem, ela informou que em outras gestões já foi disponibilizado um ônibus, mas que os próprios ostreiros fizeram baderna e perderam o direito.
Sobre a fiscalização da pesca predatória, Luciana admitiu que a gestão não tem esse controle. “É muita gente no mangue por causa do desemprego. Existe a possibilidade da gente incluir os ostreiros em programas federais que já contemplam pescadores, como o Chapéu de Palha, para que eles recebem um dinheiro no período de reprodução das ostras, mas enquanto não existir uma associação ou cooperativa é muito difícil”, complementa.
Enquanto as promessas não saem do papel, Zuleide Maria, 51, leva três horas para chegar à Praia de Boa Viagem e às vezes não consegue nem o dinheiro da passagem. Com o balde de ostras equilibrado na cabeça, ela representa a atividade de centenas de mulheres e homens que vivem da comercialização da iguaria e esperam por mais garantias de direitos.
*Fotografia: Paulo Uchôa/LeiaJáImagens