Instituído em dezembro de 2003, o Estatuto do Desarmamento, da forma como é hoje, pode estar com os dias contados a partir do próximo ano, quando Jair Bolsonaro se tornará presidente do Brasil. A lei federal 10.826 restringe a venda e o porte de armas no país. Bolsonaro, por diversas vezes, já falou em revogação do estatuto. Entenda abaixo um pouco mais sobre a lei, posse e porte de arma de fogo e como poderá funcionar a partir do próximo ano.
Como é a posse e o porte de arma
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A posse de arma de fogo significa que o proprietário pode manter a arma na residência ou local de trabalho em que é responsável legal. Ela é permitida através do Estatuto do Desarmamento dentro de algumas condições. É preciso ter no mínimo 25 anos de idade, ter ocupação lícita e residência fixa, não ter sido condenado ou responder a inquérito ou processo criminal, comprovar aptidão técnica e psicológica e declarar a efetiva necessidade de possuir uma arma.
É a Polícia Federal quem avalia a necessidade da posse da arma. Por ser uma questão mais subjetiva, pode apresentar maior ou menor rigor dependendo da região. Colecionadores, atiradores e caçadores fazem o registro através do Exército.
Já o porte quer dizer que a pessoa pode transportar e carregar a arma consigo. O porte é proibido ao cidadão, exceto se for integrante das Forças Armadas, polícia, Força Nacional de Segurança Pública, guarda, agências e departamentos de segurança, segurança privada e outros. Deverá haver demonstração de necessidade do porte e comprovação de aptidão.
Como poderá ser
Em seus discursos, Bolsonaro defende principalmente mudança drástica na posse de arma de fogo, retirando a declaração de efetiva necessidade. “Posse da arma de fogo: 21 anos de idade e alguns pré-requisitos, exame psicológico, exame de manuseio e residência. Não precisa mais do que isso”, disse ele quando ainda candidato em uma entrevista na Rede TV. Para a Record, o capitão também disse: "Efetiva necessidade está comprovada pelo estado de violência que vive o Brasil". Além disso, o presidente eleito quer abolir a obrigatoriedade de renovação do registro a cada três anos, o que ele chama de “IPVA das armas”.
Sobre o porte, Jair comentou: "O porte não pode ser tão rígido como é o que temos no momento. Eu, como capitão do Exército, tenho que penar de quatro em quatro anos, para ter o porte de arma de fogo, imagina o cidadão de bem".
Aliado a isso, Bolsonaro defende o excludente de ilicitude, dispositivo presente no Código Penal, que trata da exceção para uma pessoa cometer um ato proibido, como roubar e matar. Por exemplo, se um policial está recebendo tiros de uma quadrilha, atira e mata um criminoso, ele responde pelo homicídio mas pode recorrer ao excludente de ilicitude para ser absolvido.
No plano de governo de Bolsonaro, há as seguintes frases: “Policiais precisam ter certeza que, no exercício de sua atividade profissional, serão protegidos por uma retaguarda jurídica. Garantida pelo Estado, através do excludente de ilicitude. Nós brasileiros precisamos garantir e reconhecer que a vida de um policial vale muito e seu trabalho será lembrado por todos nós! Pela Nação Brasileira!” e “Reformular o Estatuto do Desarmamento para garantir o direito do cidadão à LEGÍTIMA DEFESA sua, de seus familiares, de sua propriedade e a de terceiros!”.
O capitão do Exército costuma usar como exemplo um caminhoneiro que percebe que está tendo o estepe roubado e mata o ladrão ou um fazendeiro que vê sua terra sendo invadida pelo Movimento Sem Terra (MST). Para o político, a pessoa deve responder pelo homicídio, mas não condenada.
Bolsonaro precisará contar com o Congresso para que as mudanças sejam aprovadas. Especialistas apontam, entretanto, que ele pode flexibilizar a posse sem ajuda do Congresso. É que o estatuto fala em "declarar a efetiva necessidade" da arma, mas a exigência de comprovação foi regulamentada através do decreto 5.123/04. O decreto poderia ser modificado pelo presidente. O mesmo não vale para o porte, pois já na lei é exigida a demonstração de necessidade.
O deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL), o terceiro filho do presidente eleito, na palestra que ficou conhecida no período eleitoral por causa da declaração de que para fechar o Supremo Tribunal Federal (STF) bastava um cabo e um soldado manifestou a seguinte opinião: “Pra mim efetiva necessidade é o quê? Um país onde tem 60 mil homicídios por ano, todas as pessoas têm a efetiva necessidade de andar armado. Opinião minha. Está certo ou está errado? Não sei, podemos discutir. Mas o presidente pode redigir um texto regulamentando o que é efetiva necessidade. E se ele fizer conforme eu falei, está feito, é lei. O porte dá para fazer basicamente a mesma coisa também, mas aí não seria para todo mundo, seria por categorias. O presidente pode colocar acho que até vigilante, alguma coisa assim, como as categorias... Pode facilitar muito o porte. E a posse dá para abrir geral”
Projeto
Em estágio mais avançado de tramitação, está o projeto de lei (PL) 3722/2012 do deputado Rogério Peninha Mendonça (MDB), que propõe, na prática, a revogação do estatuto. O texto está pronto para ser votado e, se não for ao final da atual legislatura, será arquivado. O político já declarou que trará a matéria novamente em 2019, devido à intenção do atual relator em apresentar um substitutivo e por acreditar que a próxima legislatura terá um perfil mais conservador.
O projeto precisa ser aprovado por maioria simples na Câmara. Caso o texto passe sem alteração no Senado, segue para sanção do presidente. Ao longo da tramitação em comissões, o projeto original sofreu várias mudanças. Para trazer novamente a revogação do estatuto para a Câmara, Peninha pretende se reunir com parlamentares e especialistas. “Não é possível dizer em detalhes como ficará a matéria, mas ela se parecerá muito mais com a original do que com o substitutivo apresentado na comissão”, explicou em entrevista ao jornal alemão Deutsche Welle.
No senado, há o Projeto de Decreto Legislativo (PDS) 175/2017, de autoria do senador Wilder Morais (DEM). A matéria propõe uma consulta popular sobre as seguintes questões: se a população rural com bons antecedentes deve ter o porte de arma assegurado; se o Estatuto do Desarmamento deve ser revogado e substituído por uma nova lei que assegure o porte de armas de fogo a qualquer cidadão que preencher os requisitos; e se o Estatuto do Desarmamento deve ser revogado e substituído por uma lei que assegure a posse — e não o porte — de armas de fogo a qualquer cidadão preencher os requisitos. Wilder, do estado de Goiás, não foi reeleito em 2018.
Argumentos
Para o professor de direito penal da UNINABUCO Glebson Bezerra, o Estatuto do Desarmamento deveria endurecer ao invés de ser flexibilizado. "Ele precisa ser mudado, mas flexibilizar não é a solução. Em uma sociedade onde tudo é resolvido na base do grito, não é saudável armar a população. É preciso requisitos mais objetivos e mais duros, para que possamos implantar uma sociedade equânime. Associado com políticas públicas, o estatuto é válido se levado ao pé da letra", salientou ao LeiaJá.
Bezerra acredita que a medida de revogação da lei é seletiva. "Essa posse e esse porte visam dar garantias a quem tem dinheiro. A gente sabe que uma arma hoje não é barata. Nem todo mundo tem R$ 10 mil, R$ 12 mil para comparar uma arma. Defender a propriedade é papel do Estado", complementa.
Uma pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) de 2013 apresentou que, sem o estatuto, a taxa de homicídios no Brasil seria 12,6% maior. O mesmo estudo apontou que, em média, a cada ponto percentual a mais no número de armas de fogo em uma cidade, a taxa de homicídios chega a aumentar dois pontos percentuais.
Números mostram também que nos nove anos anteriores ao Estatuto do Desarmamento, de 1995 a 2003, a taxa de assassinatos aumentou 21,4%. Nos nove anos seguintes, até 2012, a taxa cresceu 0,3%. Segundo o artigo "Um tiro que não saiu pela culatra", do cientista social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Glaucio Soares e do economista do Ipea Daniel Cerqueira, a arma pode fazer com que quem a porte se sinta mais seguro, mas não repele bandidos, ao contrário, atiçaria a cobiça pelo objeto. Levantamento do Ministério Público de São Paulo (MPSP) e Instituto Sou da Paz, de 2015, constatou que quatro em cada dez armas usadas para crime tinham registro, ou seja, foram compradas legalmente e acabaram nas mãos de criminosos. Em 1999, levantamento da Secretaria de Segurança de São Paulo e Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) identificou que uma vítima armada tem 56% mais chance de ser assassinada.
Dados da Polícia Federal revelam que, entre 2004 e 2017, foram vendidas 805.949 armas de fogo no Brasil de forma legal, enquanto no mesmo período foram entregues voluntariamente 704.319 armas. Para o Instituto Sou da Paz, que requereu os dados através da Lei de Acesso à Informação, o resultado derrubaria o argumento de que o desarmamento tirou a 'arma do cidadão de bem'.
O Movimento Viva Brasil (MVB) é um dos mais conhecidos no combate às políticas desarmamentistas. Em seu site, o grupo diz defender a premissa de que a população brasileira deve ter preservada a liberdade individual de opção pela posse legal e responsável de armas de fogo, "compreendidas como elemento necessário ao exercício eficaz do direito à legítima defesa". Para o movimento, nenhuma campanha de desarmamento da população contribui para redução da criminalidade. "Tais ações, como se tem demonstrado, são fulcradas em questões subjetivas, números manipulados e visam somente o convencimento do cidadão honesto em abrir mão de um direito individual hoje garantido por lei e referendado pelo povo brasileiro na consulta popular realizada em 2005", diz o texto, fazendo menção ao referendo de 2005, em que 63,94% (votos válidos) da população votou a favor da comercialização de armas e munição. O MVB acrescenta sobre a lei: "Uma lei elitista e discriminatória, uma vez que impõe custos e trâmites burocráticos capazes de tornar a compra de uma arma de fogo praticamente impossível, sobretudo para a parcela da população mais desfavorecida economicamente".