Recebi longa e impressionante carta de um velho amigo. Justificou-se dizendo que escreve para não se sentir só. Pedi autorização para transcrever e publicar trechos nos meus artigos quinzenais, generosamente, suportados pelo JC.
Concordou sob o pseudônimo Paulo Frederico. Percebi quea força arrebatadora do texto repousava sobre fascinantes contradições, desde a visão salvífica do apóstolo Paulo ao niilismo demolidor de Frederico, o Nietzsche.
Sobre a solidão:“A solidão estána origem e no destino dos homens. Começa e termina, paradoxalmente, com dois encontros: o primeiro com a vida; o segundo com a morte. No princípio, com a proteção do conforto placentário, abrigado e alimentado, acendem as primeiras centelhas da (pré?)consciência. Vindo àluz do mundo, com breve passagem, passa a compartilhar de núcleos de relacionamento que vai da família àsociedade global. Modernamente, a criatura vive, convive (?) com multidões, multidão de tagarelas, conectados na potência das redes. E assim vive, iludido pelo instinto gregário: contingências, conveniências, sobrevivências, sobra-vivências. O que resta são sobras de um mínimo ser só, atéque se reencontra no líquido amniótico, transformado em pó, no húmus acolhedor, a Terra, a natureza-mãe, carinhosa com o grão a ser dissolvido,sumido nas trevas da noite e nos brilhos do sol”.
Com lucidez, disserta sobre a beleza. “A beleza éo espelho da miséria humana. Nela, enxergo a minha fealdade e sinto as labaredas da inveja. Sou um perseguido pelas minhas faltas. Seráque estou sóneste sentimento desolador? Seráque o terremoto existencial da falta deixa lugar para a esperança e uma réstia de luz para o poder da fé? Ouço um zumbido nos meus ouvidos: dêum sentido àsua vida! Lute! Como lutar se sou um re-sentido? E um ressentido não consegue enxergar belezas interiores. Meus olhares cupidos se deleitam com as ancas das mulheres. Sou um homem ou um bicho? Não hámargem para dúvidas sou um bicho-homem ou, tanto faz, um homem-bicho na sua extrema pequenez. Sinceramente pecador. Impuro. Haverálugar para os arrependidos?".
Sobre o amor, o texto élongo e profundo. Explora o tema nas múltiplas visões da filosofia, da religião, da mitologia e reconhece na capacidade de amar uma grande virtude humana que engloba as três dimensões legadas pela concepção grega: a dimensão erótica (Eros, o desejo), a dimensão da amizade (Philia, sentimento amplo que busca na amizade o bem do outro), a dimensão universal (Agapé, o amor universalista que une Deus aos homens e os homens a Deus). Para ele, o amor não se comanda; o amor comanda, portanto, não éum dever, uma coerção; éuma virtude, uma liberdade.
Embora respeite a afirmação do evangelista São João que “Deus éamor" (Agapé), o meu amigo desacredita do amor como um sentimento completo: “Émais fácil e bonito afirmar o amor àhumanidade do que exercer o prosaico amor ao vizinho numa reunião de condomínio. Ninguém estáa salvo das ambições modernas que nos impõe o dever de ser feliz que, para além dos ansiolíticos, éamar os inimigos. Ronda a alegria de amar, a tragédia da paixão. E ainda que seja uma enfermidade passageira, traços da paixão permanecem: possessão, luxúria, egoísmo, fragilidades que brotam dos ressentimentos e das fraquezas da natureza humana. Nela estáa tendência de imputar aos outros nossas falhas e nossas faltas”.
E o que parece um niilismo insuperável, o meu amigo surpreende ao confessar: "No lixo da minha existência, sou um catador da compaixão e da misericórdia para seguir adiante rodriguianamente abraçado àvida como ela é”.