O caminho e desafios para alfabetização de jovens autistas

Crianças brasileiras com autismo enfrentam uma realidade que deve ser entendida e trabalhada pelos profissionais das escolas

por Mariana Ramos sex, 25/08/2023 - 16:44
Freepik O lúdico e a tecnologia podem colaborar no aprendizado inclusivo Freepik

O Transtorno Espectro Autista (TEA) alcança 1 a cada 36 crianças brasileiras aos 8 anos de idade, segundo dados do Monitoramento de Autismo e Deficiências do Desenvolvimento, do Centro de Controle de Doenças e Prevenção (CDC), publicado em março de 2023. Apesar do número significativo, a inclusão destes jovens na educação, por muito tempo, não foi uma prioridade. 

“Eu tive muito pouco apoio da escola porque a escola não sabia o que ele tinha. Ninguém notava, só eu notava dentro de casa”, é o que relata Silvia Valéria Vidal, de 54 anos, auxiliar de laboratório e mãe de uma pessoa autista.

Gabriel José Vidal Salgueiro, desde muito novo, demonstrou alguns sinais característicos do TEA, como a seletividade alimentar, dificuldade para interagir socialmente e desafios para se comunicar. Silvia conta que, apesar de notar essas atitudes, o único laudo que teve de seu filho até os seus 18 anos foi de TDAH, Transtorno do déficit de atenção com hiperatividade.

“No maternal, a professora começou a me sinalizar o fato dele não socializar. (...) Acho que até o sexto ano, ele estudou em escola particular e não tinha apoio, entendeu? A alfabetização, ele teve que repetir de ano. Eu fiz questão que ele repetisse porque eu achei que era só dificuldade de escolaridade. E ele não tinha apoio em sala de aula, muitas vezes ficava isolado”, relembra a mãe.

Silvia Vidal e seu filho, Gabriel Vidal. Foto: Júlio Gomes/LeiaJá.

Hoje, com 23 anos, Gabriel completou todo o ensino médio mas ainda não consegue ler. Silvia explica que ele consegue reconhecer algumas palavras por memória fotográfica, então memorizava algumas delas. Gabriel conhece as letras e consegue transcrever todas, mas não consegue ler os sons delas juntas.

“A escola nunca esteve preparada, nunca. A que ele fez particular, eles colocaram uma estagiária sem preparo nenhum para ensinar ele, ele não se identificou com ela. Era a maior dificuldade para ele ir para escola, ele não queria. Quando ele fez o segundo grau, tinha um acompanhamento à tarde, que a professora nunca ia”, destaca Silvia.

Silvia Vidal explica que, mesmo com 23 anos, Gabriel é como uma criança de 8. Para ela, é como viver com uma criança crescida dentro de casa, que precisa de acompanhamentos, de atenção e de coleguinhas para se divertir. Silvia se sustenta com um emprego, enquanto luta para conseguir clínicas que atendem autistas adultos para levar seu filho.

Silvia Vidal e seus filhos Gabriel e Clara. Foto: Júlio Gomes/LeiaJá.

“Não foi fácil não, viu? Quando eu descobri (o autismo), eu não romantizei. Eu não tive tempo de pensar em nada, eu tinha que agir e eu tinha que correr atrás do desenvolvimento dele. Tudo isso eu fiz sozinha, porque eu nunca tive o apoio do pai. Minha luta, hoje em dia, é procurar tratamento para ele. Ele precisa de fono, precisa ocupar o tempo dele, porque não tá mais indo para escola, precisa de coleguinhas para brincar”, reforça a entrevistada.

Diagnosticado aos 18 anos, o psicólogo acredita que Gabriel possui grau 3 de TEA. A mãe de Gabriel destaca que o preparo das escolas era diferente de antigamente e, quando encontra uma mãe de um autista jovem, tenta aconselhar para que o cuidado com ele não seja tão desafiador quanto o que Silvia e seu filho tiveram juntos.

“Hoje em dia, a gente tem mais profissionais, tem pessoas capacitadas para identificar. Mas na época que eu corria nas clínicas com ele, eu não via esse preparo todo, entendeu? Eu não via. Então, eu não sei se por causa do tempo, o diagnóstico dele foi tardio, talvez eu pudesse ter mais sucesso com ele, mesmo com todas as minhas dificuldades”, declarou a auxiliar de laboratório.

Os avanços da aprendizagem inclusiva

Sandra Lúcia Araújo Pimentel é mãe de Miguel Pimentel da Silva, com 9 anos atualmente, Miguel foi diagnosticado com autismo com entre os 6 e 7 anos de idade. Apesar do laudo considerado cedo, Sandra passou anos acreditando que o único diagnóstico do seu filho era apraxia da fala (AFI).

Sandra Lúcia Araújo, mãe de Miguel Araújo. Foto: Júlio Gomes/LeiaJá Imagens

Miguel passou cinco anos sem conseguir falar e, quando começou, teve dificuldades na pronúncia de algumas letras. Essa também é uma característica do Transtorno Espectro Autista (TEA), mas Sandra não tinha conhecimento sobre estas particularidades. Foi quando decidiu colocar seu filho em uma nova escola, na Escola Municipal Severina Lira, no Recife, Pernambuco

Severina Lira possui uma prática de ensino inclusivo, com três professoras dedicadas ao Atendimento Educacional Especializado – (AEE). Este preparo ajuda mães como Sandra a conhecer seu filho e incluir ele para aprender com outras crianças.

Janira Oliveira é uma destas professoras do ensino inclusivo e trabalha nas AEEs, nas salas de Recursos Multifuncionais. Especialista em educação especial, Janira explica que o trabalho pedagógico do professor do AEE é feito no período de contraturno com crianças com algum tipo de deficiência ou transtorno. 

"Nós fazemos um trabalho de reforço, algumas estratégias que facilite a comunicação e a aprendizagem dela para que ajude o trabalho do professor na sala de aula comum. A gente sabe que as crianças, mesmo tendo transtornos iguais, eles têm formas de aprender diferenciadas", explica a professora.

Sandra lembra como as professoras da escola notaram rapidamente as características únicas de Miguel e indicou que ele visitasse um geneticista. Logo na primeira consulta, o médico diagnosticou Miguel com autismo com base no relatório das docentes.

"A professora atendeu ele, fez um relatório e me encaminhou para clínica, para o geneticista. Quando chegou lá, ele fechou logo: autismo. Até então, eu não sabia. (...) Foi quando eu consegui o diagnóstico dele, foi na primeira consulta. Quando ela leu o relatório, ela fechou na hora, e até então eu tava com esse menino sem saber o que ele tinha", conta a mãe.

Sandra Lúcia Araújo, mãe de Miguel Araújo. Foto: Júlio Gomes/LeiaJá Imagens

Antes deste diagnóstico, Sandra explica que não conhecia nada sobre o autismo e começou a estudar sobre, através de livros e de outras mães para entender mais do seu filho. Mas tudo isso, com a ajuda e apoio das professoras especiais da escola.

"O convívio na escola é uma riqueza para ele porque tá ensinando ele a viver sem preconceitos, a respeitar a diferença. Ele é diferente, o outro é diferente, o mundo é isso. (...) Hoje ele fala, com algumas dificuldades, mas fala pelos cotovelos", celebra a mãe.

Janira defende que a sala de recursos multifuncionais funciona por múltiplas razões. Além de um tempo a mais para socializar na escola, o espaço ajuda as crianças com deficiência ou algum transtorno a superar dificuldades que possam existir dentro da sala de aula comum e superar elas dentro do seu próprio desenvolvimento.

"Nós sempre estamos em contato com a professora da sala comum e sempre perguntamos qual a maior dificuldade que ela encontra para trabalhar com a criança, para que nós também possamos, na sala de recursos, dar esse apoio. (...) Muitas crianças que têm o Transtorno do Espectro Autista, elas têm dificuldade no aprendizado da leitura", detalha a docente.

Para atrair esses jovens, o trabalho da sala multifuncional mexe muito com atividades, brincadeiras e jogos lúdicos. Assim, conteúdos comuns podem tocar muito mais as crianças por ser uma linguagem natural da infância.

Janira Oliveira, professora e especialista em educação inclusiva. Foto: Júlio Gomes/LeiaJá Imagens

"Quanto mais você conscientiza, mais a coisa vai caminhando. Se você pensar em dez anos, não era como é hoje. O acesso que as crianças especiais têm hoje a tecnologia, a diversos recursos. Então se a gente olhar para trás um pouco, a gente vê que avançou, mas avançou pouco para a necessidade", afirma Janira.

A gerente de Educação Inclusiva do Recife, Adilsa Gomes, garante que trabalhos como este da Escola Severina Lira acontecem em todas as escolas da Rede Municipal. Além do trabalho das salas de recursos multifuncionais e do AEE, todos os professores passam por uma formação continuada para conhecer e aprender sobre a educação inclusiva.

"Muitas vezes as pessoas falam sobre inclusão, mas nós trazemos uma fala maior, uma fala mais ampla, que é a equidade. Que significa, dar oportunidade a todos, dentro das suas potencialidades, dentro das suas diferenças, mas também dentro das suas igualdades ", declarou Adilsa.

Outros projetos, além da formação dos professores, contam com o uso de tecnologia assistivas, como aplicativos de comunicação alternativa e aumentada que estão em tablets distribuídos para os alunos. Também é entregue um catálogo de jogos gratuitos que ajudam no desenvolvimento das crianças, disponíveis em ordem de faixa etária para que os pais possam baixar.

"Durante muito tempo o professor e a professora não sabiam trabalhar com as crianças com deficiência, porque a sua formação inicial não tinha esse olhar. Eu sou uma professor que, quando eu fiz magistério, quando eu fiz pedagogia, não tinha uma disciplina, nem um momento de reflexão sobre como trabalhar e como vivenciar as ações inclusivas", relembra a gestora.

Adilsa Gomes, gerente de Educação Inclusiva do Recife. Foto: Júlio Gomes/LeiaJá Imagens

Adilsa defende que a alfabetização está alinhada com o letramento e que é uma construção: "A alfabetização é uma construção que inicia na educação infantil e permanece por toda nossa vida porque a alfabetização é muito mais do que a gente ler textos, ler palavras, ler coletâneas. A alfabetização é quando a  gente consegue ler, conhecer, interpretar e fazer validar tudo que a gente aprendeu no mundo como um todo."

A gerente de Educação Inclusiva também é uma pessoa com autismo e descobriu de forma muito tardia. Foi só depois que ela se tornou professora, aos 33 anos de idade, que teve seu laudo fechado. Com sua experiência, Adilsa acredita que é preciso ter um olhar que todas as crianças conseguem e podem aprender, mas precisam de pessoas, profissionais e familiares, que estejam aptos a contribuir na educação destas crianças.

DTEA: Mais um avanço possível

O trabalho e o esforço para ajudar no desenvolvimento do ensino para crianças autistas também motivou Leticia Viegas Gomes, mestra em design na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a trabalhar e pesquisar sobre o assunto. 

Foi assim que a profissional desenvolveu o Dispositivo TEA (DTEA) focado em sistematizar o processo de alfabetização de forma lúdica e criativa para as crianças que possuem o Transtorno Espectro Autista. Leticia, que também é mãe, conta que a inspiração para esse projeto não veio de seu filho, mas sim de uma colega da escolinha dele:

"Eu tenho um filho de oito anos que, na época que eu comecei o projeto, ele tinha uma colega de classe que era uma aluna autista e a escola não estava sabendo muito bem ainda como lidar com essa nova educação, tinha sido a primeira aluna lá. E aí, calhou de estar próximo do projeto, eu pensei, como eu posso auxiliar essa criança e outras crianças também?"

Leticia Viegas Gomes, desenvolvedora do DTEA. Foto: Júlio Gomes/LeiaJá Imagens

Através da tecnologia e da curiosidade, Leticia começou a hipótese do seu projeto através de pesquisas de casos, de comunidades de pais e de crianças autistas. A ideia é criar um fluxo dinâmico que consiga se encaixar em diferentes perfis das diferentes crianças com TEA. 

Cerca de 50 crianças foram entrevistadas e estudadas para criar as proto-personas, os tipos de público que o projeto pode alcançar e como ele pode se encaixar em cada um deles. 

O projeto começa com a coleta de dados, em que os pais ou profissionais devem preencher um formulário com informações sobre aquela criança, em relação ao diagnóstico, se já é conhecido. Também é procurado saber o nível de alfabetização e aprendizado dessa criança, seguido pelas perguntas sobre os gostos pessoais e interesses individuais deles. 

"As crianças autistas possuem uma característica muito interessante que é o hiperfoco. Esse hiperfoco vai de acordo com temáticas diferentes, pode ser música, animação, números… Então a gente vai pegando essas características de hiperfoco para trabalhar as dificuldades dessa criança.", explica Leticia.

O ideal é que tenha um mediador responsável que tenha as informações sobre as capacidades atuais da criança e o dispositivo vai desenvolver atividades que possam ajudar a criança a se desenvolver para além do seu limite, sempre utilizando das habilidades e detalhes do foco e interesse individual da criança para chamar sua atenção aos exercícios. Pensando em como ele poderia ser utilizado em ambiente escolar, Leticia responde:

“Acredito que amplamente (o DTEA) dá para ser usado em escolas. Até de uma forma para a gente tirar um pouco a criança do padrão que a gente tem hoje em dia escolar, né? Eu vejo que a educação infantil, principalmente, ela é nesse sistema que a gente faz tudo igual para todo mundo. Só que cada criança tem um nível de atenção diferente, tem um nível de comprometimento diferente, tem hiperatividades diferentes, né?”, explica.

“Então dentro dessa dinâmica escolar, a gente consegue dar uma equalizada, sabe? A gente consegue medir a interação de cada criança, consegue medir a atenção dela e dar a ela o seu tempo de educação. Porque ela que vai estar jogando, ela que vai estar interagindo, ela que vai estar fazendo a dinâmica. Então acho que auxilia bastante, dentro do ambiente escolar, dar autonomia para a criança”, continua a jovem.

Leticia Viegas Gomes, desenvolvedora do DTEA. Foto: Júlio Gomes/LeiaJá Imagens

O sistema ainda é apenas teórico pois, segundo a criadora, não houve tempo e nem capital hábil para se tornar real. Apresentado em 2022, o projeto ainda tem chamado interesse de professores e pesquisadores que pensam em ampliar o projeto para autistas adultos também, por exemplo. A mestra em design ainda afirma que o projeto pode ser usado com crianças com outros tipos de transtornos também. 

“Eu tô em contato com alguns professores aqui da Universidade Federal que também querem desenvolver e amplificar para adultos autistas. Para a gente conseguir ver se alcança a alfabetização destes adultos. Então assim, é um projeto que está em andamento lentamente, mas ele ainda está sendo continuado”, declara a entrevistada. 

Quando perguntada sobre a importância do seu projeto, Leticia defende a capacidade de ensinar de forma divertida, lúdica e no tempo de aprendizado de cada criança. Tornando o estudo para estas crianças autistas mais autônomo e dinâmico.

“Eu acho que a gente dá autonomia para essas crianças, sabe? No autismo, a gente vê muita dependência. As crianças sempre acabam sendo dependentes por questão de comunicação, por questão de entendimento. Então a autonomia para elas é uma questão muito importante de ser desenvolvida, principalmente a autonomia na sua própria educação”, afirma.

“Muitos casos que eu vi dos pais foi que, por exemplo, que essa criança não conseguia pedir água, não conseguia pedir comida, não conseguia se comunicar. E a comunicação é o básico para o ser humano. Então você conseguir proporcionar isso para crianças que não estão conseguindo se desenvolver, que elas mesmas se sentem frustradas por não conseguir se comunicar. Isso é uma chave”, finaliza Leticia.

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